Carta encriptada para o mundo só aberta com magia
Olá mundo, poderia eu escrever, como escrevem aqueles senhores das internetes e das programações que se já odiava começo a odiar cada vez mais. Não é um ódio verdadeiro, é um ódio de desabafo por me sentir tão diferente deles e da sua forma numérica de processar o mundo, e essa diferença me custar a possibilidade de um trabalho bem pago, sem muitas chatices e inserida numa rodinha dentada de hamster. É aquele ódio de desespero de "se eu fosse assim já tinha arranjado trabalho" que vem acompanhado por outra voz interna meio rouca e fininha que me diz ao ouvido "mas deixavas de ter uma vida, a tua. É isso que queres?". E eu aborrecendo-me com as duas, deixo-as a discutir e venho-me embora, cabisbaixa com a complexidade disto tudo. Será arranjar trabalho assim tão importante ao ponto de, por não o ter, estar cada dia que passa com mais urgência e com aquela sensação agoniante de que qualquer dia "aceito qualquer coisa" que me atropela todas as maravilhosas intenções e esforços que envidei na busca por mim, pelo que gostaria mesmo de fazer e por essa luta de dizer não às coisas que seriam mais fáceis mas não alinhadas com o meu eu e com a minha estrela de valores e o diabo a sete. Estou naquele ponto da escarpa em que se dou mais um passo caio no abismo e me transformo naqueles seres rezingões que gozam com todas as pessoas que dizem "gratidão" e "segue o teu coração" e "faz o que sentes" e tudo e tudo...
E o mais hilariante? É que eu era/sou (?) uma dessas pessoas. Não queria nada perder esse meu lado de fascínio com uma certa ordem neste caos, a do olhar da beleza, mas da que se concretiza. À minha volta parece que a Pandora não soube fechar a puta da caixa. Tal como o casalinho que comeu a puta da maçã quando lhes tinham dito que "era melhor não". E eu sou a Pandora, sou Adão e Eva, sempre com esta mania de desobedecer mesmo que depois me sinta tremendamente mal por ser assim. É uma não aceitação de grau X na escala de Richter. É uma exaltação, é uma inquietação, inquietação, inquietação como cantava o outro.
E no meio do turbilhão, um furacão, uma lagoa em chamas abertas dentro de mim, do meu âmago, numa montanha russa com parafusos que ora se soltam ora se apertam, um fósforo a queimar que nunca mais vê o fim, e uma canseira à alentejana que só dá vontade de mandar tudo foder.
Fui de férias ao norte. Fiquei numa casa. Ou deveria dizer num labirinto de resiliência? Desde calor dos infernos, a barulhos intermináveis durante a noite, uma chaleira ao lume a fazer favas que não dava descanso aos ouvidos e luz de estádio de futebol a iluminar o colchão pequeno e colado ao chão do quarto que imobilizava o corpo como num caixão, a tensão e elefantes diários nas pequenas escolhas diárias que se tinham que fazer, foi de chegar ao dia de visitar o Siza nas suas marés de Matosinhos e perguntar-lhe onde é o ralo do Porto, que eu tinha que largar todas as águas que vinha acumulando dentro de mim.
Mas o mais irritante de tudo isto é que onde acumulei cansaços, acumulei esperanças, por cada mau houve um bom, e isso é o que me agonia neste vómito que fica preso na garganta e que se sente que está quase a sair mas nunca sai. Fosse um bebé e bolsava esta merda na hora. Mas não sou. Fica ali no vai não vai, no fala não se fala, no resolve-se não se resolve, no vamos investir, vamos ficar por aqui, é pior que o outro (que também cantava) "BAZAMOS OU FICAMOS?" E eu adicionaria o jargão-cantilena do norte, que eu devo ter sido de lá numa outra vida - CARALHO!
Tenho tantas decisões a tomar neste momento que me apetece dar uma de Nandinho (aka Fernando Pessoa) ir buscar o absinto e ver ficar a ver fadinhas verdes a mandar fodinhas nesta realidade.
Continuo chorona, rezingona, refilona, pouco crente e não quero ficar amarga. Mas puta que pariu que não tem sido nada fácil. Decisões, decisões, decisões, e pouca ação a fluir num sentido de mudar esta espiral desenhada com aquelas réguas infantis de fazer espirais. Fica bonito, mas se queremos ser nós a controlar, vai sair do eixo e fica uma linha fora do enquadramento, fora de si, fora de nós. Será que nós poderemos mesmo algum dia ser livres nas nossas escolhas?
Será que somos mesmo livres? E o que é isso do livre arbítrio quando tanta coisa dentro de nós condiciona as nossas escolhas e é quase preciso um mamute de força para nos atirarmos para fora da nossa zona de conforto de forma consistente, sem que entremos numa depressão profunda por fazermos a vida como nunca a fizemos antes e assim a mantermos?
Filosofias.
Comprei livros. Muitos livros.
Talvez a acusar cansaço dos livros do bem-estar, da moda do bem-estar onde eu quero(queria?) à força tanto entrar, de repente eu que não ligava nada à política quero entender-lhe o estado do mundo, perceber como é que chegámos a esta civilização capitalista porque espantosamente começo a querer pôr-lhe as culpas em cima e de repente entro noutro estereótipo maravilhoso de dizer que a culpa é do sistema (ahahahaha rídicula).
Viro-me para várias frentes em busca de fendas que me parecem oferecer possibilidades de saída, às vezes parece-me que já nem os meus pensamentos mágicos funcionam, e que estou presa nos limites de uma condição... Seja lá qual ela for. E perceber que se calhar questionar-me sobre ela talvez não me ajude assim tanto.
Será ridículo eu sentir-me normal quando faço compras num supermercado? Normal, normalizada, menos poeta, menos filósofa, menos rebelde, mais "enquadrada" num mundo em que me quero inserir (quase que à força), neste dilema de querer que me aceitem na diferença mas tentando ser igual? Dúvidas, dúvidas, dúvidas... Quase de certeza produto de estar ja quase há ano e meio com contactos reduzidos e digitais do ponto de vista social. Gostava de ser mosca de ressonância magnética para espreitar para dentro do meu cérebro e ver que luzes se acendem lá dentro agora. Deve estar um belo emaranhado, como os meus colares na mesa de cabeceira que ainda só não foram à tesoura porque agora sou uma pessoa muito mais "normalizada", ponderada, inteligente emocionalmente. É rídiculo chegar a um ponto em que só me apetece gozar com tudo aquilo que aprendi, que adoro aprender e que continuamente me salva a existência, essas teorias de sofrologia que até agora eu quero aprender. (Obrigada Marie. Do alto do seu avanço na história que foi a sua, continuo todos os dias a achá-la uma força da natureza e todos os dias me pergunto se já faleceu. Tenho saudades suas. De falar consigo. De olhar nos seus olhos, mesmo quando caiu diante de mim desamparada em plena aula minha e eu, socorrista mas pouco, a tentar serenar ambas as almas que olhavam para mim com alguma distância e urgência de serem acudidas e acolhidas).
Fragmento esta escrita porque é assim que me sinto. Fragmentada, com muita coisa para dizer. Sem saber a quem dizer o quê e sem saber muito bem como ligar os pontos. Como ordenar o sentir. Senti muito, tenho sentido muito, e quero continuar, quero mesmo. Mas há momentos em que constatar que a vida é tão mais complexa que o meu entendimento me fazem sentir pequena, incapaz, e sem poder (powerless), hopeless ... Mas é tão curioso porque tal como na minha relação com o trabalho por vir, como na minha relação-relação, também aqui eu tenho a justa (?) medida do equilíbrio (?) e por cada coisa boa tenho uma má, por cada pensamento de esperança tenho um de desespero, e por cada momento em que congelo com o medo da morte, vem de dentro de mim uma força de querer viver...
Ocorre-me a palavra imanência do fundo das entranhas e nem sei o que é que ela quer dizer. Vou ao priberam. Diz-me que é a Existência da causa na própria causa."imanência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/iman%C3%AAncia [consultado em 01-09-2021].
(copio e ele cola-me aqui o link só para terem a certeza que lá fui! Até os dicionários estão a ficar egóicos. Não vá alguém dizer o mesmo e não citar a fonte. Como se as fontes viessem todas de sítios individuais e não fossem oceanos que correm juntos! Enfim... Continuamos a querer preservar a individualidade mas achamos que para o fazer tem que haver dela uma separação das águas que a alimentam. Só somos indíviduos em grupo. Porque se o formos sozinhos que termo de comparação teremos para dizer que somos únicos? E pronto... já me desviei de novo.)
Voltando à imanêcia. Não percebi. Talvez não tenha que perceber agora e por isso vou refrear o meu instinto normal de ir chafurdar até entender o que não entendi. Neste esforço de aceitar o fluir da vida e do seu mistério. De não tentar compreender tudo e ficar bem com isso (até me dá uma volta ao estômago, mas vou tentar... estou a tentar, a sério que estou.)
Não aguentei. Confesso que fui pesquisar mais. Dizem-me que é referente ao concreto, ao material e fico surpresa como o meu corpo me vomita palavras assim, sem eu as compreender intelectualmente mas tão acertadas no momento. Talvez o meu trabalho até aqui, aquele com que tenho gozado desde o início deste texto, me esteja a fazer regressar ao lugar onde sempre quis estar, dentro de mim, compreendendo o mundo com as vísceras, o coração e o cérebro e pondo-os todos a conversar no jardim do diálogo religioso. À procura de se religarem entre eles. À procura de me religare.
Por agora chega. Já foi tanto. Que a mensagem te chegue, como sempre, pouco laminada, pouco delapidada e com a crueza normal e confusa do meu ser, sempre com a transparência de um vitral colorido para que pelo menos te alegre a alma, ainda que pareça que apenas a vou tingir com uma coloratura do universo confusa, cáustica e embrulhada.
Aqui me tens. E aqui me encontrarás. E sei que neste momento tudo isto é encriptado para ti. És tu que me abraças e acolhes na totalidade da minha confusão. E espantosamente, devolves-me a crença na Graça, neste mistério da Fé. Na magia. No saber que isto era suposto ser assim, jargões e palavras bonitas à parte. Uma certeza latente de que pelo menos não estou só.