Quando o corpo te informa e tu não o ouves
A vida é difícil.
Talvez esta frase tenha sido a melhor de todas, de todos os tempos, e que fez mais por mim do que muitos livros de auto-ajuda.
A vida é difícil lembra-me que todos os conflitos pelos quais passo são inerentes a esta condição humana de ser consciente. E, como diria o Damásio, numa adaptação humorosa da coisa, é a nossa maior benção (porque nos permite sobreviver dia após dia numa orquestração complexa de orgãos, tecidos e neurónios) e a nossa maior maldição (porque nos faz conscientes de que se a orquesta falha lá se vai a nossa integridade para o raio que a parta e deixamos de experienciar a vida tal como conhecemos - perdemos a consciência para sempre).
A vida é difícil. Não só do ponto de vista biológico porque é sempre uma tentativa de superação da entropia, mas também do ponto de vista psicológico. Vários fatores competem entre si e nós temos que ir encontrando as soluções de menor risco, as soluções suficientemente boas, porque isso de soluções perfeitas já há muito que entendi que só nos contos do Walt Disney e até aí as princesas disseram sim mais vezes do que aquilo que deviam.
E foi exatamente aí que me encontrei ontem. Num sim forçado por uma sensação de obrigação, porque se me vinha a queixar que não tinha e que tínhamos que fazer algo para ter mais, não quis ser vista como a gaja que não valoriza, que não validou o esforço e que não viu o outro, mas a verdade é que não me apetecia.
Depois de um dia em que o óleo do cabelo já me escorria pela cara porque foi dia de limpezas, ao facto de ter uma cozinha inteira para limpar e comida para fazer porque não queria deitar fora coisas que se estavam a estragar, ser interrompida nesse processo, fez-me sentir um dilema de merda. Ou ia pinar porque tinha passado o fim de semana a dizer que queria mas nunca tínhamos encontrado um momento adequado, ou então criava uma crise porque ele se esforçou e a mensagem que ia receber é que eu nem assim estaria disponível. Conclusão, pensei eu, como devem pensar milhares de mulheres, vou dar-me ao momento porque eu até tenho prazer e se calhar até saio revigorada, faço-o sentir-se bem porque me ouviu e deu algo à relação e agora aqui estou eu, às 05:23 da manhá, sem óculos, embrulhada numa manta, a escrever para colmatar as quatrocentas e vinte mil voltas que dei na cama. Lovely.
E neste momento estou a tentar não ser dura comigo. Porque o único coro de vozes que ecoa dentro da minha cabeça é tudo menos celestial. Diria que se assemelha a um coro de mulheres brasileiras em poetry slam a lutar contra o patriarcado e a forma como ele se intromete nas nossas escolhas que deveriam ser livres. Ah mas espera, fui eu que decidi. E aí sim, começa a verdadeira chacina. A chacina que me leva de volta até casa, onde aprendi que devíamos regular as emoções dos outros muitas vezes à custa da nossa. Onde devemos fazer "comply" para que a vida seja menos conflituosa, confusa, mais vivível, menos sofrível. O meu corpo dizia terminantemente que não era uma boa ideia e eu forcei-o em prol da paz. Em prol de um dia que tinha começado meio estranho e que revelou convicções que me assustaram. Falou-se de as relações serem transacionais e de como isso "era assim". Falou-se de como se teria a certeza que se fosse eu a fazer certas coisas não as faria por comodidade. Falou-se com uma certeza tal de tantas coisas que me gerou a necessidade de fugir em direção a umas compras básicas onde me senti de novo empoderada porque me ressoou a conquista de demónios passados.
A vida é difícil.
E por muito criativa que seja, por muito reflexiva que seja, tenho momentos em que ainda não sei fazer melhor, em que, após a consequência da minha decisão, percebo que deveria ter tomado outra. E honestamente no meio de todo este caos, de não controlo, de inconstância, de sensação de que realmente controlo muito pouco, sinto-me À procura da luz a que me posso agarrar, tentando não me punir por estar a aprender, lembrando-me que fazer diferente custa e é por isso que há pouca gente a fazê-lo.
No silêncio da noite, esse silêncio poético que já não acolhia há muito, decidi não forçar mais o meu corpo. Já tinha tido esforço por hoje. Se ele me dizia que queria estar acordado, assim lhe dei esse espaço, assim o validei, assim o escolhi em detrimento de um software que às vezes quer tomar o controlo de cima para baixo, mobilizando com maior esforço e energia o corpo. Talvez essa seja a prova que ainda tenho algum caminho para estreitar entre mente e corpo. Talvez os eventos exteriores me estejam a oferecer ruído e por isso não consiga ouvir esse fluxo de água que deveria ser cristalino e estreito.
A vida é difícil.
E eu estou a tentar não me punir. Estou a tentar abraçar-me nesta falha. Neste momento em que escolhi e claramente escolhi mal. Em que tive uma consequência. Em que estou agora a lidar com isso. Num sonho aparecia-me ele a olhar para mim com a frieza que lhe senti ontem nas palavras "as relações são transacionais" e dizia-me "Já fomos mais felizes juntos não já?" e eu com lágrimas amargas na boca vindas de um peito a tremer dizia-lhe como uma criança que acaba que de descobrir que a morte existe "Já, mas ainda assim podemos fazer alguma coisa não?". Pueril. Sempre à procura de ver o lado dos unicórnios.
A vida é difícil.
Talvez devesse ir para o chapitô. Aprenderia como manter várias bolas no ar ao mesmo tempo, e a espalhar magia nos semáforos da cidade. E sorrisos também. Vejo-os sempre com uma energia verdadeiramente genuína. Invejo-os por momentos e quando posso dou-lhes sempre "valor". Seja uma moeda, seja um sorriso. Porque eles aprenderam como pôr no ar as várias bolas que a vida nos atira. Mas mais do que isso, fazem-no com leveza, com gentileza, com carinho, com amor, com uma energia pueril de quem sabe que está cá, unicamente para se conhecer nesta unicidade singular que é o nosso corpo. Talvez o sentido da vida seja interior. Seja explorar todas as potencialidades e conhecer ao pormenor o nosso único maior amante - o nosso corpo e o que ele nos permite sentir. Talvez as biografias se escrevam apenas porque existem corpos. Porque essas pessoas das biografias se decidiram a conhecer os seus corpos em interação. Porque lhes deram tempo, carinho e comprometeram-se a aprender com a enorme inteligência que ele tem. Achamos que somos nós os donos e senhores da Inteligência, mas apenas porque por uma feliz coincidência ela aconteceu dentro de nós.
[É o mesmo que me gabar de ter os peitos pequenos (peitos não, mamas!, que peito é o espaço entre elas...) quando já vim com eles. Não os escolhi. Para quê fazer bandeira disso?]
É aceitar que ela existe, que ela nos ajuda e que dela podemos desfrutar. E seguir, encosta acima, a rolar a bola, talvez numa encosta mais inclinada do que a Sísifo pensou, talvez modificando o nosso corpo nessa subida fortalecendo músculos, compreendendo o nosso interior nessa interação com o exterior. Talvez haja tanto mais nesta produção de ansiedade muitas vezes necessária e até benéfica.
A natureza funciona pela lei do menor esforço. E ainda assim a vida é difícil. Ou deveria dizer, e por isso a vida é difícil?
O menor esforço significa aceitar à cabeça também os lugares de onde viemos, as crenças que nos fizeram crer e aceitar que a evolução é algo passivo. Por vezes penso que sim, por outras penso que não. E o mais giro que descubro é que ambas estão certas. Nesta unidade de schrodinger em que ambos os estados de vida e morte coexistem, compreendo cada vez mais (ainda que não cada vez melhor) que talvez, mesmo contra a percepção, tudo contenha em si, o que é e o seu oposto, e mais uma vez a natureza fez a coisa bem feita. De uma coisa apenas, à luz de cada singularidade que somos, o nosso sistema nervoso percepciona essa coisa de uma forma ou de outra, consoante aprendizagens anteriores, momentos presentes, enfim, uma panóplia de coisas que o corpo se encarrega de resolver e iterar dia após dia.
A vida é difícil. E neste momento é díficil não me sentir culpada por já saber tanto sobre tudo isto e ainda assim ter feito o erro crasso de, para evitar MAIS um conflito, ter cedido. E não consegui avaliar inteligentemente a minha cedência. Mas o corpo, esse que é o primeiro a ter a inteligência antes de mim, fez-me sentir com violência a violência da minha decisão.
Sinto neste momento uma mistura de raiva muda, de um desespero amargo e uma sensação de vazio que veio de ontem para hoje, segunda feira, o dia dos inícios. E eu, para não me sentir à margem, decidi reiniciar as minhas aulas de dança. Estou fodida comigo. Ainda ontem pensava para comigo como andava a dormir tão bem, como era possível até, chegar às dez da noite e já ter sono, e o sono ser reparador. E logo hoje, dia de reinício, onde "deveria estar" repousada para dar ao corpo magia, dou-lhe isto (desculpa não te ter dado melhor). Neste momento estou entre o querer chicotear-me e o ter uma mão carinhosa que me diz para pousar o chicote. Que não faz sentido. Que o amor cura tudo. Que a única forma de aprender e reter a aprendizagem é com carinho, com meiguice, com alegria, para que esses pensamentos, tal como a carne, se reproduzam, se multipliquem, e esses sentimentos nos digam que sim, "é por aí". Nada se mantém e tudo morre se não tiver amor. Amor sob a forma de tempo, sob a forma de cuidado, sob a forma de carinho e compreensão. Sob a forma de compreensão de que a vida é difícil, de que andamos aqui todos aos papéis, a fazer o melhor que sabemos, e a sermos suficientemente bons na aprendizagem.
Sempre odiei a palavra Suficiente.
Neste momento quero, conscientemente, começar a gostar dela. Bocadinho a bocadinho, momento a momento. Porque percebo que se for suficiente, já é muito bom, e esse talvez seja o segredo para olhar para o perfecionismo nos olhos e lhe dizer que ele merece um abraço. E que não me vou punir. E que não o quero fazer. Porque já magooei demais o corpo ontem, não quero continuar a magoá-lo mais. Não é assim que se cura uma ferida.
(Eu perdoo-me por não ter ouvido o meu corpo. Eu perdoo-me por ter procurado validação. Eu perdoo-me por ter achado que aquela seria melhor forma de evitar um conflito. Eu perdoo-me por me ter entregue como no passado sem querer, apenas para cumprir com um objetivo.)
Eu perdoo-me.